Jussara Lucena, escritora

Textos

O sinistro, o destro e o louco

A Dodge City de hoje não tem as mesmas emoções de alguns anos atrás. Depois que o Xerife Earp e seus irmãos chegaram não há diversão de verdade para um velho cowboy. Lembro-me como se fosse hoje daquele verão de 1873. Eu era apenas um garoto, antes abandonado, que trabalhava num estábulo da cidade. Já havia visto todo o tipo de gente passar por ali: cowboys, jogadores, gente cheia de dinheiro e alguns pobres miseráveis também. Desde que paguem, dizia o patrão, “atendemos índios e mexicanos também”.
A chegada da diligência da Wells & Fargo era esperada por todos. Quase sempre aparecia uma nova garota para trabalhar na Dodge House. Quase todas de muito longe do Kansas.
Mas ele não chegou na diligência. Foi num final de tarde, logo depois de uma forte ventania, surgiu em meio a poeira, como um espírito que se materializa. Era quase igual a tantos outros que passaram por aqui. O que o diferenciava não era o seu traje, pois vestia uma camisa de flanela, lenço no pescoço, chapéus de abas largas, calças jeans e luvas de couro como qualquer cowboy. No alforje uma jaqueta de couro.
Ele não portava um dos famosos peacemakers da Colt. Sua arma era mais elaborada, com belas marcas gravadas no cabo. Além da estrela em metal, duas letras: L.H. Não me veio à mente nenhum nome de pistoleiro das histórias do velho Smith, um ferreiro que parecia ter nascido há mais de duzentos anos de tanta história que tinha para contar. Se estivesse vivo, com certeza eu perguntaria a ele.
Não havia como não olhar para as armas nos coldres do forasteiro. O homem estava coberto pelo pó da estrada e fedia a carniça, mas as pistolas brilhavam, como se tivessem sido limpas há apenas alguns minutos. Pelo peso no alforje, ele carregava muitas balas. Não bastassem os dois revólveres, ele carregava também uma carabina Winchester, também muito cuidada.
Me aproximei para perguntar das armas, não consegui nem enxergar os olhos do sujeito, escondidos pela aba do chapéu e cabeça baixa. Ele pegou a carabina, colocou em minhas mãos e sugeriu que eu fizesse mira.
– Gostou, garoto? Faça-me um favor, guarde-a para mim!
Em seguida, jogou-me algumas moedas nas mãos e entregou-me o cavalo. Eu nunca havia segurado uma arma daquelas nas mãos.
Duas horas depois, com roupa trocada ele saiu do Great Western Hotel. Passos firmes, cabeça ainda baixa, suas botas agora limpas, forçavam as tábuas do assoalho da varanda do armazém geral. A lua cheia parecia iluminar o sujeito, mas a sombra da aba do chapéu ainda tornava o rosto misterioso.
Não havia quase ninguém na rua. Os homens da cidade estavam quase todos no Long Branch Sallon. Eu o segui até lá. Ficaria observando pela janela.
Quando ele empurrou a porta do bar, fora de hora, todos os olhares se dirigiram a ele e para as duas pistolas presas ao cinto. Quase todos se certificaram que as próprias armas estavam ao alcance.
Uma das garotas usava o piano. Poucos percebiam a canção reproduzida. O burburinho e as risadas continuaram após uma pausa de dois segundos.
O forasteiro se aproximou da barra e pediu um uísque. O barman esforçou-se para olhar nos olhos dele, sem sucesso, pois apesar das velas nos candelabros a sombra contribuía para o clima de mistérios em relação ao homem debaixo do chapéu.
Ele pegou o copo e sentou-se numa mesa de canto. No trajeto passou por Jeannie, que lhe esboçou um sorriso, não retribuído.
Numa das mesas, o Xerife O’Brian o observava, enquanto ordenava algo para um de seus ajudantes. O’Brian caminhou até o homem, puxou a cadeira e sentou-se.
– Boa noite forasteiro! Sou o Xerife O’Brian. Belas pistolas, não são?
– Boa noite! Não são apenas belas, também são certeiras.
– Foi o que imaginei, senhor...
– Não importa o nome.
– Pois bem, senhor Não Importa o Nome. Preciso ficar com suas certeiras pistolas.
– Melhor não arriscar tirá-las de mim, afinal todos portam pistolas neste saloom.
– Conheço cada um dos homens aqui, menos o senhor. Então, melhor não arriscar. Já faz algum tempo que não temos pistoleiros na cidade.
O barman abaixou-se, pegou um rifle debaixo do balcão e apontou em direção ao sujeito. Sem opção, ele entregou as armas ao Xerife.
– Posso beber sossegado agora?
– L.H., são as iniciais do seu nome ou do homem de quem roubou as pistolas?
Ele não respondeu, apenas continuou de cabeça baixa.
– Melhor olhar para mim quando falo, amigo! – disse-lhe O’Brian chutando-lhe a canela.
O homem ficou em pé, encarando O’Brien e antes que ele pudesse sacar a arma, o forasteiro lhe tomou o Colt 45 e apontou para a testa do Xerife. O salão silenciou-se por três longos segundos. O homem baixou o revólver e colocou de volta no coldre do Xerife. Depois, caminhava em direção a saída, quando um dos ajudantes do Xerife, Jhonny Caolho, lhe bateu na cabeça com a coronha da espingarda.
O’Brian não gostou nada de ser humilhado em frente de todos. Arrastou o sujeito para a cadeia.
Já se passavam dois dias. Segundo o Xerife, o homem continuava em silêncio, sem pronunciar o nome. Tiraram-lhe a comida, mesmo assim ele se mantinha calado.
Eu sabia que no começo da noite, na hora do jantar, todos saiam da cadeia. Fui até os fundos, me equilibrei sobre um barril que arrastei até lá e chamei o sujeito pela pequena abertura na parede.
– Ei, forasteiro! Sou o garoto do estábulo. Trouxe um pouco de comida. Vou jogar pelo buraco.
– Obrigado! Preciso de ajuda.
– Não sei se posso. Não quero ser seu companheiro de cela!
– Amanhã deve chegar à cidade um outro sujeito. Ele tem pistolas iguais as minhas. No cabo, as inscrições são R.H. Apenas diga a ele que estou preso aqui e diga que L.H. pediu que ele dê início ao plano. Se fizer isso, daqui há dois dias você será o dono daquela Winchester.
Logo cedo ele apareceu. Levei um susto: era o mesmo sujeito preso na cadeia da cidade. Como havia dito, os revólveres tinham as iniciais R.H.
– Como foi que saiu da cadeia? – perguntei ao sujeito, que me entregava as rédeas do cavalo.
– Eu lhe conheço?
– Ontem você, me pediu que quando um sujeito com as iniciais R.H. no cabo do revólver chegasse eu deveria lhe contar que você estava preso. Pelo jeito conseguiu resolver o problema sozinho. Matou o Xerife?
– Então L.H. já está preso. Quando foi?
– Há dois dias. Espere, se você não é o sujeito que está preso, só pode ser um irmão gêmeo!
– Se você está me dizendo isso é porque meu irmão confia em você. Me diga, em que horário há menos gente vigiando a cadeia?
– Na hora do jantar. O Xerife fica sozinho. Ele espera que um de seus ajudantes volte e só depois ele sai para o jantar.
– O que meu irmão lhe prometeu para que você o ajude?
– A Winchester que guardo para ele.
– Pois bem, se fizer o que eu lhe pedir, lhe dou uma pistola igual a essa.
– Claro, mas nunca vi uma assim antes. Quem a fabrica?
– Eu as modifico. Que iniciais quer nela?
– J.H., de Jason Howard. Mas espere, não sei se posso fazer o que me pede!
– A única coisa que precisa fazer é, ao meu sinal, no horário do jantar, correr até um dos ajudantes do Xerife dizer a ele que o forasteiro escapou da cadeia e está bebendo no saloon.
Concordei com a proposta. Não desconfiariam da minha ajuda, pois, hipoteticamente, eu estaria ajudando o Xerife a prender um fugitivo.
No horário combinado, aguardei o sinal de R.H. e corri até a casa de Jhonny Caolho. O homem correu em direção a cadeia, quando encontrou R.H. montado em seu cavalo e atirando para o alto, Jhonny Caolho, rastejou até a cadeia, temendo ser atingido.
Quando avisou, o Xerife apanhou o rifle e foi ver o que acontecia. Não acreditou no que via. R.H. atirou contra o cavalo do Xerife, sem atingi-lo. O animal se assustou e fugiu em velocidade. Provavelmente R.H. havia deixado as amarras frouxas.
O Xerife ordenou que os ajudantes perseguissem o fugitivo. Voltou para a cadeia incrédulo. Acho que ficou ainda mais curioso quando percebeu que alguém dormia na cela, chapéu sobre a cabeça, cobrindo rosto. Chamou pelo forasteiro, que não respondeu. De arma em punho, abriu a porta da cela e cutucou o sujeito. L.H. virou-se rapidamente, apontando uma pistola para o nariz do Xerife. Segurei-me para não rir.
Só então, comecei a e entender o que acontecia.
– Muito bem Xerife O’Brian! Ou prefere que eu o chame de Louco O’Brien de Kansas City?
– Isto já foi há muito tempo. Você já havia nascido?
– Já era crescido o suficiente para assistir o enforcamento de meu pai. Você não tinha motivos para matá-lo. Você e seu bando estavam todos bêbados. O único erro de meu pai foi sair à rua para buscar ajuda para a minha mãe, que também morreu naquela noite, por falta de assistência.
– Não me lembro disso!
– E da morte do Reverendo Windsor? Lembra?
– Ele se colocou entre mim e dos dois garotinhos. Eu não queria atingi-lo. Espere, então o sujeito lá fora era o seu irmão gêmeo?
– Então não estava tão bêbado assim. Eu, meu irmão e nosso pai não significávamos nada, não é mesmo?
– Seu pai foi incompetente, um ferreiro que mal conseguia ferrar um cavalo! Perdi meu melhor animal após uma infecção na pata.
– Pois bem, os filhos do ferreiro cresceram. Vamos até lá fora! Vê esta arma, igual as que me tomou naquela noite? Foram feitas com todo o cuidado pelas mãos dos dois filhos do ferreiro, especialmente para lhe dar uma morte digna, um fim que não foi concedido ao nosso pai.
Na rua, R.R. aguardava, após despistar os homens do Xerife.
– Morte digna? Isto é covardia: dois contra um homem desarmado!
– Dizem que o senhor é rápido no gatilho, Louco O’Brian. Escolha: R.H. ou L.H.
– Que diabos! Qual a diferença?
– Left-hand ou Right-Rand. Prefere morrer pelas minhas mãos ou prefere a mão direita de meu irmão.
– Um duelo a luz da Lua Cheia. No mínimo diferentes, não é? – questionou R.H.
L.H. jogou a pistola de O’Brian no meio da rua. O Xerife, sem saída e ainda confiando em suas habilidades com a pistola apanhou a arma e se posicionou para o duelo.
Sorrateiramente, Johnny Caolho chegou por detrás do armazém geral e apontou o rifle para a cabeça de R.H. Ele ia apertar o gatilho quando se ouviu um tiro vindo debaixo do assoalho do saloon. Foi meu primeiro tiro em direção a um homem, um tiro de sorte. Acertei a perna de Jhonny. Então R.H. conclui o serviço acertando uma bala no outro olho do caolho.
L.H. caminhou lentamente e se colocou no lado oposto da rua. Ajeitou o chapéu e pela primeira vez deixou os olhos azuis à mostra. R.H. tirou uma gaita de boca do bolso e começou a soprar uma suave balada. Na porta do salloon Jeannie suspirava e já sonhava com os braços do forasteiro.
O’Brian esperou o momento em que uma nuvem encobriu a Lua para atirar. De nada adiantou, o pistoleiro canhoto atirou pela primeira vez arrancando a arma das mãos de O’Brian. No segundo tiro acertou o joelho direito e na segunda o esquerdo. Quando O’Brian caia, a terceira bala atingiu diretamente o coração do Xerife.
Abraçados, os dois irmãos caminharam em direção ao estábulo. L.R. encilhou seu cavalo, enquanto R.R. colocava Jeannie em sua garupa.
Eu já havia escondido a Winchester quando cheguei ao estábulo. L.R. tirou a arma do coldre. Eu recuei. Ele segurou a arma com a qual havia atirado em O’Brian pelo cano e entregou-a para mim. No cabo, as iniciais J.H.
Nunca mais se ouviu falar dos dois irmãos e de Jeannie.
Depois daquele dia, comecei meu negócio de compra e venda de armas. Comecei com a Winchester e prosperei, também comecei a criar algumas cabeças de gado. Tenho até hoje a pistola fabricada pelos gêmeos sem nome. Com a chegada dos Earp, os negócios de armas faliram e mantenho apenas uma loja de ferragens e um pouco de gado.
Não gosto dos Earp. Me faz bem quando dizem que Wyatt Earp, nos seus pesadelos, vê os gêmeos voltando à Dodge em noites de Lua Cheia, cobrando-o por seus pecados.

Texto que fez parte da Antologia Cinco balas para um diabo, organizada pela Dríade Editora.

Adnelson Campos
20/11/2020

 

 

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